Canibalismo, esquartejamento, estupro coletivo, decapitação, “jogo de
bola” com cabeças, sevícia com cabo de vassoura, olhos vazados, ida para
cela sem luz e com escorpião. São exemplos de punições — talvez as
piores — da espécie de “código penal” que se criou entre presos do
sistema penitenciário brasileiro, segundo levantamento do GLOBO em
denúncias da Justiça Global, do Ministério Público e do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Mais do que regras de organização entre
presos em cadeias superlotadas e insalubres, as “penas” aplicadas por
detentos a outros também são, principalmente nos casos mais violentos,
forma de demonstrar poder. À semelhança dos tribunais do crime em áreas
dominadas por facções fora das cadeias, também dentro delas grupos de
presos fazem seus julgamentos e dão seus vereditos.
— Há grupos
com poderio nos presídios, e não só por serem de alguma facção. Em
Recife, no Complexo do Curado são os “chaveiros”, presos que ficam com
as chaves das celas. Em outros locais há os “celas livres”, como em
Rondônia; ou os “faxinas”, os detentos que, em tese, cuidam da limpeza e
têm circulação mais livre — conta Sandra Carvalho, coordenadora-geral
da Justiça Global, ONG de direitos humanos. — As rixas entre presos são
exponencializadas pelas condições em que o Estado os mantém:
superlotação, má alimentação, insalubridade, assistência médica
precária. São condições nas quais o preso com mais acesso a um ou outro
serviço pode se impor. Fica evidente a incapacidade do Estado em relação
ao sistema prisional.
APÓS ESQUARTEJAMENTO, FÍGADO ASSADO E COMIDO
No
último dia 13, o MP do Maranhão denunciou à Justiça o caso de um
detento do Complexo de Pedrinhas que no fim de 2013 foi torturado por
horas por outros presos; morto a facadas; esquartejado em 59 partes; e
teve pedaços de seu fígado assados e comidos.
“Tudo se iniciou a
partir de desentendimento com um detento” de uma facção, relata o
promotor Gilberto Câmara França Júnior na denúncia. A vítima também
teria “ofendido” outro detento, que seria “torre” desse grupo, “última
instância antes da liderança geral”. Após a tortura, ligaram para o
“comandante” do grupo — “preso em estabelecimento prisional federal” —, e
o veredito foi a morte.
Após execução e esquartejamento,
“chegaram a pôr sal nos pedaços do corpo (...), para que não exalasse
odor desagradável”. Então, os denunciados “fizeram um fogo e assaram o
fígado (...), repartindo esse órgão em pedaços, que foram ingeridos por
esses indivíduos, os quais mandaram pedaços para outros detentos também
comer”. O corpo só pôde ser reconhecido por um familiar porque um dos
pedaços trazia uma tatuagem: “Vitória razão do meu viver”, dizia a
homenagem da vítima à filha.
GAY E COM DÍVIDA DE R$ 15. PENA: ESTUPRO COLETIVO
A
Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados
Americanos (OEA), enviou, no último dia 14, resolução ao Brasil
determinando que o país tome medidas para garantir a integridade física
dos presos do Complexo do Curado. Segundo uma das denúncias, um detento
homossexual, este ano, recebeu como “sanção” de outros presos passar por
estupro coletivo numa cela de isolamento com mais de 30 detentos. A
“acusação”, segundo os presos, era o fato de que a vítima devia R$ 15 a
um preso “chaveiro”. Depoimento da mãe da vítima indica que a
homossexualidade do detento (que é transgênero, com corpo com traços
femininos devido a hormônios) também teria sido levada em conta para a
pena. Por causa do estupro, a vítima contraiu Aids.
— No Curado,
nos últimos dois anos, já temos conhecimento de pelo menos cinco sanções
de estupro. Parece-nos que tem se tornado uma prática — diz a advogada
Natália Damazio, da Justiça Global, contando que a entidade não tem
conhecimento de que o detento estaria recebendo coquetel anti-Aids. — Um
preso heterossexual foi submetido a tortura por outros, sendo que parte
da tortura foi ser estuprado com um cabo de vassoura.
Outro tipo
de punição é enviar o detento “condenado” por seus pares a celas de
isolamento ou castigo — que no Curado, são locais sem iluminação e com
presença de escorpião. Houve relato de castigo que consistiu em ataque a
detentos por cães rottweiler, sob a vista de “chaveiros”.
‘JOGO DE BOLA’ COM CABEÇAS
Este
ano, na Paraíba e na Bahia, presos foram decapitados por outros, que,
depois, chegaram a “jogar bola” com a cabeça do corpo degolado, diz
Sandra Carvalho. Essa situação já foi vista em presídios de São Paulo e
do Espírito Santo.
— Em São Paulo, os atos de violência entre
presos ocorreram principalmente entre o fim dos anos 90 e a primeira
década dos anos 2000, no processo de dominação dos presídios do estado
por uma facção criminosa — conta ela.
Fauzi Hassan Choukr, coordenador das Promotorias de Execuções Criminais da cidade de São Paulo, ressalta:
— Essas anomalias são evidências de que temos um simulacro de sistema penitenciário. Estamos devendo isso à sociedade.
PAÍS NUNCA FOI CONDENADO NA OEA PELO SISTEMA PRISIONAL
Em
Rondônia, no presídio Urso Branco, houve presos esquartejados; que
tiveram os olhos vazados e golpeados com “chuços”, armas brancas
improvisadas (pedaço de ferro preso num pedaço de madeira). Soube-se de
corpos de presos encontrados dentro de paredes de celas.
Urso
Branco pode fazer com que o Brasil receba sua primeira condenação pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos devido à situação do sistema
prisional do país, avalia a coordenadora da Justiça Global. Uma
condenação pela OEA pode gerar, por exemplo, obrigação de o Estado pagar
reparações a vítimas e seus familiares; ou seguir determinadas
diretrizes em políticas públicas.
— Nas instâncias de direitos
humanos da OEA (a Corte e a Comissão Interamericanas), o Brasil tem, em
relação ao seu sistema penitenciário, processos sobre os complexos de
Pedrinhas e do Curado, e sobre o presídio Urso Branco. Mas nunca foi
condenado com relação a isso (o sistema prisional). Urso Branco pode ser
a primeira condenação — diz Sandra.
O presídio teve duas grandes
chacinas entre presos: em 2004 e no Réveillon de 2001 para 2002, quando
mais de 20 detentos foram executados por outros, diz Sandra, porque
decisão judicial determinando que não houvesse mais presos “celas
livres” foi erroneamente interpretada.
— Em vez de coibir a
circulação dos “celas livres”, misturaram esses presos com os do
“seguro”, fecharam a porta e foram para o Ano Novo. Os presos mais
vulneráveis a receberem castigos são os do “seguro”, os que cometeram,
por exemplo, estupro; além de gays, idosos e presos que não recebem
visita, porque não têm dinheiro para pagar as cobranças que muitos
grupos fazem em várias prisões — diz Sandra. — Há quase dez anos a OEA
faz determinações ao Estado brasileiro sobre Urso Branco e as renova,
porque não são integralmente cumpridas. Há cerca de dois meses enviamos
novo documento sobre Urso Branco à OEA. Houve melhorias, mas ainda há
violações graves, superlotação, péssimo atendimento de saúde.
COM AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA, COMBATE À SUPERLOTAÇÃO
Para
tentar mudar o quadro do sistema prisional brasileiro, um dos caminhos
que o Judiciário tem tomado é a realização de audiências de custódia, em
que a pessoa precisa ser levada à presença de um juiz em até 24 horas
após ser presa. Segundo o CNJ, em oito meses, desde que as audiências de
custódia começaram a ser implantadas, 21.273 presos foram atendidos —
cerca de 3% dos presos no país (711,4 mil), segundo relatório do CNJ de
2014. Dos 21,1 mil que passaram por essas audiências, “46,4% tiveram a
concessão de liberdade provisória”, diz o Conselho.
— Antes de
2008, quando começaram os mutirões carcerários do CNJ, nem os juízes iam
aos presídios. Nos últimos anos, começou uma cultura no Judiciário de
entender as prisões. Um dos instrumentos tem sido a audiência de
custódia — diz Fernando Mendonça, juiz de Execuções Penais de São Luís e
presidente do Fórum Nacional de Alternativas Penais do CNJ.
—
Também são necessários mais presídios, mas muitos poderiam receber penas
alternativas. Só no estado de São Paulo, são presas, em média, 300
pessoas por dia. Precisaríamos construir prisões em velocidade
inexequível para atender a isso — afirma Fauzi Hassan, do MP de São
Paulo.
Procurado pelo GLOBO, o Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, disse que, sobre a resolução
da OEA quanto ao Curado, a União está prestando “apoio financeiro e
assistência técnica” ao governo de Pernambuco, que inclui “R$ 82,6
milhões para abertura de 2.754 vagas”. “O Depen reafirma compromisso com
o apoio aos estados na gestão do sistema”, diz, destacando que
“disponibiliza sua Ouvidoria como defesa dos direitos da população
carcerária”.
Fonte: O Globo
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