“Deram apenas 24 horas, mas ela se tornou um símbolo de vida”,
vibra Haroldo Lucena, um carpinteiro de 51 anos, referindo-se à filha.
Ele e sua esposa, a missionária católica Maricelma da Silva, 33, são
pais de Mateus e Ruhama, gêmeos univitelinos, ou seja, idênticos.
Todavia, enquanto Mateus é uma criança normal, Ruhama apresenta uma má
formação congênita que intriga a medicina.
À
primeira vista é fácil perceber que a síndrome ainda não diagnosticada
pela ciência médica não foi capaz de abalar a alegria que Ruhama
manifesta no olhar e no sorriso. Ela nasceu sem o bulbo, porção inferior
do tronco encefálico que estabelece comunicação entre o cérebro e a
medula espinhal, relacionando-se com funções vitais como a respiração,
batimentos cordíaco, pressão arterial e com reflexos como mastigação,
fala, visão e coordenação motora.
Ao nascer, em 2011, os médicos acreditavam que ela não ficaria viva mais do que um dia. Mas o milagre
aconteceu. Ruhama hoje está com três anos e nove meses. Ela vê, sorri,
interage, balbucia. Tem tato e coordenação nos pés e nas mãos. É verdade
que o seu desenvolvimento foi bem inferior ao do irmão, mas ainda
assim surpreende aos pais e aos médicos que acompanharam sua luta pela
vida.
A família reside hoje em Caicó, mas esteve esta semana em Natal para ministrar uma palestra aos alunos de uma escola
particular, onde a presença da pequena Ruhama causou forte impressão em
todos que ali estavam. Durante a entrevista ao NOVO, muitos jovens
cercavam a menina, monitorados pelos olhares atentos do irmão Mateus,
curiosos para saber a história dela.
“É como uma
lâmpada que sempre acendeu, mas que a gente depois descobre que não tem
ligação de energia”, diz Haroldo, tentando explicar o fenômeno
incorporado em sua filha, cuja expectativa de vida nem ele nem os
médicos sabem precisar.
O
drama começou em meados de 2011, quando o casal descobriu, ainda nos
primeiros meses da gestação, que além de um embrião havia algo a mais na
placenta da mãe. Os médicos descartaram a possibilidade de uma gestação
bem sucedida de gêmeos. “Era como uma bolsa de sangue, um feto sem
chances de sobreviver porque estava, entre outras peculiaridades, com o
crânio aberto”, relembra Haroldo.
Apesar dos
riscos e do medo, os pais optaram em continuar a gestação, descartando
qualquer possibilidade de aborto. Foi então que, no dia 9 de fevereiro
de 2012, após o parto de Mateus na Maternidade Januário Cicco, a equipe
médica constatou. surpresa, que o feto mal formado respirava. Ninguém
achava que aquela forma estranha de vida resistiria por mais de 24
horas, mas o bebê continuou reagindo. Um dia, uma semana, um mês...
Na
época, uma greve deflagrada pela classe médica estava comprometendo o
funcionamento das unidades de saúde e não havia profissionais
suficientes para assistir às necessidades de Ruhama. Os pais tomaram uma
decisão radical: venderam a casa em que moravam, em Caicó, e partiram
em direção a São Paulo num Opala, ano 1987, com os dois recém-nascidos.
“Começamos
uma luta para descobrir médicos que pudessem nos dizer como cuidar
dessa criança e até mesmo nos informar quanto tempo de vida ela teria”,
conta Haroldo, ressaltando que, ao lado da esposa, percorreu também
hospitais do Rio de Janeiro e Brasília. “Onde tivesse um médico que
pudesse dizer o que ela tinha, juntávamos recursos para ir atrás”,
acrescenta. Porém, sem êxito na busca, logo após os gêmeos completarem
um ano a família voltou para o Rio Grande do Norte.
Caso permanece sem diagnóstico
O pediatra Ruy Júnior presenciou o milagre do nascimento de
Ruhama. “Muita gente não acreditava que ela sairia da UTI, mas
conseguiu”, conta ele, que naquela ocasião chefiava a referida unidade
de tratamento intensivo e acompanhou as primeiras semanas de vida da
criança.
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Em entrevista ao NOVO, rememorando
aqueles dias de incertezas, conta que no caso específico havia grande
dificuldade em encontrar um diagnóstico para a enfermidade do bebê
recém-nascido. Os colegas médicos sabiam apenas que era uma criança
sindrômica, ou seja, que tinha aspectos comuns a várias doenças, mas sem
as características de nenhuma síndrome conhecida mundialmente.
Em
São Paulo, tentaram, sem sucesso, encaixar o caso dela em três
síndromes. “É muito complicado entender até quando os médicos explicam a
situação. Ela não tem bulbo, mas interage. Ou seja, o diagnóstico até
agora é que não há diagnóstico”, avalia o pai Haroldo.
“Chegar
aonde ela chegou é maravilhoso. Nós não acreditávamos que ela ia sair
da UTI. Mas, ela foi o tempo todo uma guerreira. Mostrou que ia adiante.
Começou alimentando-se por sonda. Depois passou a se alimentar
normalmente, como o irmão e hoje não depende de nenhum remédio ou
aparelho para respirar”, atesta o doutor Ruy.
O
médico lembra ainda que em nenhum momento os pais desejaram que a filha
morresse. “Pelo contrário, eles ficaram do lado da gente, acreditando
que teríamos uma vitória. E tivemos. Afinal, na hora que cada criança
daquela sai da UTI e vai para casa com a família, é um sentimento muito
forte”.
Mesmo quando uma criança nasce com
deficiência física ou mental, o médico entende que ela tem o direito de
viver. “Acredito que nada é dado a quem não pode suportar. Muitos pais
precisam dessas crianças, muitas vezes até para aprender na vida”
opina.
Categórico, o médico afirma que Ruhama é
um exemplo de que somos pequenos demais para julgar os fatos. “Tem que
existir um ser superior nessa história. E, nesse caso, eu não tenho
dúvida nenhuma”, afirma Ruy.
Com a bênção do papa
O
drama da família potiguar ganhou destaque na última Jornada Mundial da
Juventude, realizada em 2013, no Rio de Janeiro. No dia 27 de julho,
após participarem de uma celebração que reuniu bispos, sacerdotes e
religiosos, o casal conseguiu a bênção do papa Francisco.
“As
pessoas acham que a gente sofre muito. A gente passa dificuldade, mas
sofrimento não. Afinal, a vida é o mais importante”, reflete Haroldo, o
pai dos gêmeos univitelinos que se tornaram tão diferentes.
Desde
então a luta em prol da vida só revigorou dentro dele. “Estou cansado
de ouvir sentenças de morte. Precisamos mostrar à sociedade o quanto
elas (as crianças deficientes) são felizes e capazes. Enquanto isso,
muitas vezes nós procuramos problemas para reclamar e temos depressão
por isso”, desabafa Haroldo.
A família agora está
morando em Caicó, cidade natal da Maricelma, e sobrevive com a renda
que Haroldo retira da carpintaria e de palestras que o casal realiza
eventualmente sobre o caso da filha. Além disso, o movimento Provida -
que luta contra o aborto - oferece ajuda nos momentos de dificuldade e
Ruhama recebe apoio financeiro de um salário mínimo do governo.
A meta maior da família neste momento é trocar o carro ,
o mesmo Opala que a transportou para São Paulo quando as crianças eram
recém-nascidas e também para conseguir um tratamento no exterior para a
menina. Mesmo diante de toda essas lutas, quando perguntados se são
felizes, a resposta é unânime: “É só alegria”.
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