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O sertão que virou mar diante dos "jaguaribarenses", há mais de uma
década, voltou a emocionar a população, quando a seca decidiu revelar as
ruínas da antiga cidade. O Açude Castanhão, responsável por transformar
a vida de inúmeras famílias, hoje devolve um pouco de uma história de
luta e partida, acompanhada de momentos importantes da cidade e do
Estado.
Postes de iluminação pública indicam onde ficavam as ruas, 11 anos depois da inundação Fotos: Ellen Freitas
Da
parede da barragem é impossível saber onde se localiza a antiga cidade,
que fica há cerca de 50 km de distância da nova sede. A reportagem
acompanhou, com exclusividade, a primeira visita às ruínas da Velha
Jaguaribara após 11 anos de sua inundação. Para chegar ao local foi
preciso navegar durante uma hora, sendo esta a rota mais próxima. A
visita foi acompanhada pelo vereador Mathusalém Maia, que foi o primeiro
a saber das ruínas, a Coordenadora de Cultura do município, Mariane
Souza e pelo guia Gil Queiroz, sendo os dois primeiros antigos moradores
da cidade.
Nos primeiros quilômetros, era quase impossível de
imaginar o que haveria ali. A cidade teve mais da metade dos seus
prédios e casas demolidos e tudo ficou submerso durante todo esse tempo.
Aos poucos, o trajeto foi se revelando pelos galhos das árvores e pelas
grandes pedras que indicavam o caminho da velha localidade. As
primeiras surpresas foram os postes que levavam eletricidade. Eles
resistiram à força das águas e se mantiveram de pé, dando uma vaga ideia
de como era a região.
Reminiscências
De
repente, já estava em vista os escombros da antiga caixa d´água no
bairro São Vicente, que abastecia toda a cidade. As ruínas foram
trazendo à tona o que existia ali.
"Eu não tinha grandes
expectativas na ida porque eu já tinha visto a cidade toda demolida
antes das águas cobrirem, mas quando eu avistei de longe a caixa d´água
me veio na cabeça o tempo em que tudo ainda estava ali. Lembrei de
quando eu corria por ali de bicicleta, dos jogos no campinho em frente.
Faz tanto tempo que eu deixei o lugar, mas me senti de novo em casa, na
minha cidade, no meu lar, onde vivi metade da minha vida", recorda
Mariana. Ela tinha apenas 12 anos quando viu toda a sua cidade virar
escombros.
E logo ali em frente dava para ver o enfileirado de
postes de iluminação, os alicerces das residências, os locais onde
ficava a pracinha, a igreja, as casas dos amigos, o rio que era o
principal lazer dos moradores e a vida que existia, debaixo de milhares
de metros cúbicos de água.
Navegando pelo local mais uma
surpresa. O monumento erguido em homenagem ao centenário de morte do
revolucionário Tristão Gonçalves de Alencar Araripe estava totalmente
descoberto, cercado por antigas árvores. Alí, sucumbiu o então
Presidente da Confederação do Equador no Ceará, morto por tropas
imperiais. A revolução pretendia emancipar os estados do Nordeste dos
domínios da Coroa e instalar um regime republicano.
Na época, a
localidade era conhecida como Santa Rosa, pertencente ao território de
Jaguaretama. Tristão morreu lutando em 30 de outubro de 1824. No
centenário de sua morte, em 1924, o Instituto Ceará ergueu o monumento
no local exato onde seu corpo foi encontrado, pendurado em uma árvore.
Redução
do nível da água revela a história, como o monumento erguido no local
onde morreu Tristão Gonçalves. Pequena casa alugada tenta preservar o
que restou
Explorando ainda o local, foi avistada uma casa
que não foi encoberta pela água. Era residência do fazendeiro mais
importante da cidade, Melanias Bezerra. Ao ver os escombros da casa onde
nasceu, Mathusalém não conteve as lágrimas. Depois de alguns minutos em
silêncio, observando a grande pilha de tijolos, ele conta que sua casa
era uma das que não haviam sido demolidas e descreve emocionado o que
havia ali.
Na internet
"Eu e meus irmãos,
brincávamos debaixo dessa árvore, lembro de ficar correndo com os
meninos, nesse espaço da frente. A gente costumava ir ajudar o papai a
espremer cana-de-açúcar pra gente tomar com limão", conta, emocionado.
De volta à sede, os primeiros registros fotográficos feitos pelos que
estiveram na visita ganharam as redes sociais. Sensibilizadas, algumas
pessoas choraram ao relembrar com saudades da antiga cidade e de tudo o
que viveram. As lembranças voltam como um filme triste. Houve até quem
dissesse ter vontade de reconstruir tijolo por tijolo, para voltar
aquele tempo.
O projeto de construção do açude foi um choque para
a população, segundo conta a Irmã Maria Bernadete, que acompanhou como
tudo aconteceu. "Em 1985, Jaguaribara vivia seu melhor momento tanto
político quando de mobilização social e, de repente, veio essa notícia
de que seria evacuada para construção da barragem.
Resistência à obra
Foram
sete anos de luta contra a construção da obra, tudo o que pudemos fazer
foi feito e, em 1999, foi dada a licença de instalação. "Não podíamos
fazer mais nada", relata.
Diante de brigas na Justiça por alguns
direitos que até hoje não foram conquistados, pendências com relação à
posse de casas e lotes para os agricultores, Irmã Bernadete conta um dos
momentos mais emocionantes de toda essa história.
"Havia um
pescador, inconsolado de cócoras ao lado do rio, chorando muito. Sua
mudança já estava toda no carro e estavam aguardando ele para partir. Eu
fui até ele e fiquei do seu lado, quando ele perguntou ´ Irmã, como é
que eu vou me separar desse rio?´, e eu respondi que ele voltasse lá
sempre que sentisse saudades. Depois disso não o vi mais nem recordo de
seu nome, mas eu me emociono todas as vezes que lembro de seu sofrimento
ao ter de deixar o lugar", relata a irmã.
Documentários,
reportagens, livros, artigos, há uma vasta literatura sobre a história
da Velha Jaguaribara. Porém, o que há de mais precioso, as pessoas
carregam em suas memórias e em seus corações. Sentimentos que jamais
poderão ser descritos com tamanha intensidade. Só quem viveu e viu toda a
história acontecer sabe o quanto é importante preservar a memória do
lugar para manter a identidade dos novos moradores.
Hoje, a
população aguarda ansiosamente o projeto de construção da Casa da
Memória, um museu que contará toda a história desse momento importante
para a história da cidade. Os poucos objetos que restaram da velha
cidade coberta pela água estão expostos em uma pequena casa alugada pela
Prefeitura.