Facções
criminosas têm atuado para interferir no resultado das eleições em cidades do
interior do Brasil. Foi o que aconteceu em João Dias, no Rio Grande do Norte.
Um grupo que contava com traficantes internacionais ligados ao PCC executou o
prefeito da cidade após uma briga pelo poder.
A
cidade de pouco mais de 2 mil habitantes estava em plena disputa eleitoral. O
alvo dos criminosos era Francisco Damião de Oliveira, conhecido como Marcelo,
prefeito de João Dias. Ele e o pai foram assassinados em agosto de 2024,
durante a campanha para a reeleição de Marcelo.
A
execução foi o desfecho trágico de uma disputa pelo poder na cidade, que
envolvia um acordo realizado para a eleição anterior e planejado por
traficantes do PCC
"A
gente fazendo um acordo desse com você aí, é uma coisa que dá para você se
remediar pro resto da vida. Você vai sair de boa. Porque '230' eu dei para você
pagar as suas contas. E agora eu vou lhe dar mais R$ 500 mil. Pense por esse
lado. É muito dinheiro", diz Francisco Deusamor Jácome, condenado por
tráfico internacional e ligado a Marcola, o líder do PCC, em um áudio.
Na
gravação, aparecem ofertas que teriam sido feitas a Marcelo antes da eleição
para prefeito em 2020, quando a chapa do partido Progressistas trazia ele como
prefeito e a irmã do traficante, Damária Jácome, como vice.
"O
futuro prefeito de João Dias, Marcelo Oliveira, e a minha irmã, Damária Jácome,
a futura vice-prefeita de João Dias", diz Deusamor em um vídeo de
campanha. Mesmo procurado pela Interpol, Deusamor fazia aparições na campanha.
E ele não era o único da família envolvido em crimes.
"Antes
de 2019, quatro irmãos da família Jácome foram condenados por tráfico
internacional de drogas", afirma Alex Wagner Alves Freire, delegado da
Polícia Civil do Rio Grande do Norte.
Tráfico
e envolvimento com o PCC
Segundo
as investigações, Deusamor e Leidjan Jácome estariam entre os principais
traficantes do Nordeste, chegando a comercializar mais de R$ 30 milhões em
maconha. Os outros dois irmãos são José Romeu Jácome e Samuel Jácome.
"A
família Jácome sempre teve histórico de envolvimento com o PCC", diz o
delegado Carlos Michel Teixeira Fonseca, da Polícia Civil do RN.
Os
investigadores acreditam que o dinheiro oferecido por Deusamor seria para
Marcelo renunciar à prefeitura. Foi o que aconteceu em junho de 2021, seis
meses depois da posse. Quem assumiu foi a irmã de Deusamor, a vice-prefeita
Damária Jácome.
"Dedico
esse dia aos meus sete irmãos, Francisco, Maria José, Samuel, Leidiane, Romeu
e, de uma maneira mais especial ainda, aos meus dois irmãos Deusamor e
Leidjan", declarou Damária em discurso de posse.
Segundo
a polícia, mesmo antes da renúncia de Marcelo, os traficantes do PCC, Deusamor
e Leidjan, seriam os verdadeiros gestores do município, como indica a
transcrição de um discurso em que Damária afirma que os irmãos tinham
idealizado os quatro anos da administração.
"As
prefeituras hoje recebem muitos valores, tanto de impostos municipais, mas
principalmente de repasses de recursos federais", diz o delegado Alex
Wagner Freire.
A
combinação de dinheiro e poder atrai facções criminosas. De acordo com o IBGE,
a receita do município de João Dias foi de R$ 23 milhões em 2023.
"A
estratégia é tomar esse poder político em locais em que isso possa trazer algum
tipo de proveito econômico. Então, se esse município tem algum interesse que
possa repercutir nos lucros das facções, eles tentam se infiltrar também na
política", afirma o secretário nacional de Segurança Pública, Mário
Sarrubbo.
Atuação
das facções
O
Fantástico teve acesso a um relatório sigiloso feito pela Polícia Federal e
promotores de todo o Brasil sobre as eleições municipais do ano passado.
Facções
criminosas tentaram interferir na campanha em, pelo menos, 42 cidades. Só no
estado de São Paulo, o PCC teria investido R$ 8 bilhões no apoio a
candidaturas.
"Nós
precisamos estar atentos a isso e estancar esses movimentos", declara
Mário Sarrubbo.
Em
outubro de 2021, apenas dois meses depois de assumir, a então prefeita Damária
Jácome decretou luto de três dias. O motivo? As mortes dos irmãos dela,
Deusamor e Leidjan, na Bahia, durante confronto com a polícia.
José
Romeu Jácome foi preso na mesma operação. Já Samuel Jácome tinha sido capturado
meses antes, e hoje está no presídio federal de segurança máxima de Porto
Velho, em Rondônia. Damária perdeu o cargo em 2022, depois que uma decisão da
Justiça revogou a renúncia e conduziu Marcelo de volta ao comando da
prefeitura.
"Marcelo
dizia que ele era ameaçado pelos irmãos da Damária", afirma o delegado
Alex Freire.
"Ele
começa a fornecer diversas informações e a ajudar órgãos policiais com as
investigações a respeito da família Jácome", complementa o delegado
delegado Carlos Fonseca.
A
suspeita é que ele tenha indicado o paradeiro dos irmãos Jácome que, na época,
estavam foragidos. O clima era tenso na cidade, especialmente quando começou a
campanha e Marcelo concorria novamente à prefeitura, pelo União Brasil. E,
desta vez, contra Damária, que estava no Republicanos.
"O
pessoal do Jácome tinha esse grupo armado, e o prefeito Marcelo necessitou
também de criar uma força nesse sentido", acrescenta o delegado Alex
Freire.
No
ano passado, pouco antes do atentado que terminou com a morte de Marcelo e do
pai dele, Damária disse que "o que vem por aí, talvez tenha gente que nem
aguente".
Detalhes
do crime
De
acordo com a investigação, Damária e a irmã, Leidiane, vereadora de João Dias,
teriam mandado contratar homens para matar o prefeito.
As
investigações apontam que os executores usaram um sítio antes do atentado. Eles
chegaram ao local cerca de 10 dias antes do crime.
Um
vídeo, feito por um dos criminosos, foi gravado no sítio, que pertence à
família Jácome. "É peça por todo canto. Ô, quadrilha cabulosa!", diz
ele na gravação.
"Eles
encontraram dificuldades de executar o crime porque ou Marcelo estaria
acompanhado de seu grupo armado que fazia a
sua
segurança pessoal, ou estaria na residência que também é uma fortaleza",
diz o delegado Carlos Fonseca.
Os
mandantes chegaram a pensar em matar o prefeito durante um culto evangélico.
"Nós é nessa vida doida, mas a gente é temente a Deus, você sabe disso,
né? Aí, onde tá só o povo de Deus, eu não gosto de encostar pra fazer coisa
errada, não", diz um deles em áudio.
A
execução aconteceu dias depois, quando Marcelo e o pai visitavam uma barbearia.
Nove suspeitos pelo crime foram presos e quatro estão foragidos, inclusive
Damária. A polícia segue nas buscas.
A
equipe do Fantástico tentou, sem sucesso, falar com a atual prefeita, Maria de
Fátima Mesquita da Silva, do União Brasil, viúva do ex-prefeito assassinado.
Em
nota, a prefeitura afirma que a cidade passa por momentos de profunda
intranquilidade e que tem procurado devolver a normalidade à cidade e a seus
moradores.
Na
casa da família Jácome, a equipe do Fantástico também não encontrou ninguém. O
advogado de defesa disse que não há provas da participação das irmãs Damária e
Leidiane no crime, e que as duas deixaram João Dias porque foram ameaçadas de
morte.
No
portão da mansão da família, muitas fotos. Registros de tempos em que eles
tinham muita influência na vida local.
"Com
a ocupação de cargos importantes do poder político por essas facções, elas vão
logicamente lavar dinheiro, vão desviar recursos que, em tese, seriam para a
população carente, como é a cidade de João Dias", conclui o delegado
Carlos Fonseca.
Fantástico TV Globo