O
Ministério Público Federal (MPF) determinou o envio aos órgãos responsáveis de
um relatório que confronta as verbas federais recebidas pelos municípios do Rio
Grande do Norte – oriundas de emendas parlamentares, inclusive do recente caso
conhecido como “orçamento secreto” – com o número de procedimentos alegadamente
efetuados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nessas cidades, no período de
janeiro de 2015 a julho de 2022.
O
relatório é fruto de um acordo de cooperação técnica firmado entre o MPF, a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e o Departamento Nacional de
Auditoria do SUS e aponta vários casos de prefeituras que registraram a
realização de procedimentos que alcançaram um número (em apenas um ano) dezenas
e até centenas de vezes maior que o de habitantes. Os dados podem refletir
desde erros nos registros, até manipulações cujo objetivo pode ter sido “criar
procedimentos” para justificar o envio e o desvio das verbas federais.
O
procurador da República que acompanha o acordo de cooperação, Fernando Rocha,
destaca que o levantamento alerta para a necessidade de mais investigações,
tanto do MPF quanto por parte de outros órgãos de controle, até se concluir
sobre a possibilidade, ou não, da prática de crimes contra os cofres públicos.
“Não podemos ainda apontar responsáveis, nem especificar as irregularidades,
mas claramente os números demonstram existir algo muito, muito errado”,
enfatiza.
Fernando
Rocha observa que, levando em conta os dados coletados, “é possível identificar
que a partir de 2020 - que coincide com a execução das denominadas emendas de
relator RP9 (o chamado “orçamento secreto”) - nos diversos municípios
pesquisados houve um brusco e acentuado aumento dos procedimentos de saúde,
muitos dos quais incompatíveis com as médias populacionais”.
Perguntas
- O
relatório foi produzido pelo Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde
(Lais/UFRN), teve como fontes órgãos e plataformas oficiais e tentou responder
a duas questões básicas: primeiro se há algum procedimento de saúde, dentre os
ofertados pelo SUS, cuja quantidade executada seja incompatível com a população
do município e, segundo, se os municípios onde foram registradas essas
ocorrências apresentam também alguma correlação histórica com os repasses de
emendas parlamentares recebidas.
Em
relação à primeira questão, o documento destaca casos como os do município de
Olho D’água do Borges, onde registrou-se a aferição de pressão arterial
equivalente a 228 vezes em cada habitante no ano de 2020. Em Fernando Pedroza
realizou-se um número de “dispensações de medicamentos” (entrega do remédio ao
paciente) 226 vezes superior ao da população, no ano de 2017. Já em Antônio
Martins houve proporcionalmente 120 testes de glicemia para cada habitante, ao
longo apenas dos sete primeiros meses de 2022 (o relatório traz dados até julho
deste ano), “o que equivale a realizar o teste a cada 42 horas em toda a
população”.
Nesses
mesmos sete meses, em Carnaúba dos Dantas, foram registrados o equivalente a
108 “atendimentos de urgência em atenção primária com remoção” por morador. Já
em 2017, Riacho de Santana realizou 117 exames de urina por habitante.
Suspeitas
-
Recentemente surgiram diversas denúncias, em nível nacional, de uso inadequado
dos recursos públicos, a partir da manipulação dos números de procedimentos
supostamente realizados pelo SUS nos municípios, na tentativa de justificar
repasses financeiros. Em 2020 foi aprovado o chamado “orçamento secreto”,
permitindo aos parlamentares a administração de verbas federais de forma
anônima. O Tribunal de Contas da União (TCU) já alertou para os riscos decorrentes
desse novo instrumento de distribuição de recursos públicos.
O
objetivo do relatório do Lais/UFRN foi apresentar à Auditoria do SUS (AudSus)
uma análise da produção da rede assistencial do sistema no Rio Grande do Norte
e seus municípios. Foram observados onde os procedimentos ocorreram, qual a
incidência e quais desses foram considerados como indícios de irregularidade ou
de possível anormalidade. Contudo, apenas os procedimentos considerados
ambulatoriais puderam ser analisados. “A ausência dos demais dados da APS
(atenção primária à saúde) inviabiliza uma análise mais aprofundada do estudo
em tela”, descreve.
Transparência
– Em
relação a todas as emendas (que somam R$ 1,07 bilhão no período analisado), o
ano de 2021 superou os valores de 2020 em 163,4%. E, nos sete primeiros meses,
2022 já superou o total de 2021 em R$ 18,6 milhões. Levando em conta somente as
do “orçamento secreto” os municípios receberam R$ 202 milhões nos últimos três
anos, com um aumento de 463,8% entre 2020 e 2021. Em seu despacho, o
representante do MPF indica que o advento dessa nova modalidade de emenda
resultou em diminuição da transparência, dificultando o controle por parte dos
órgãos de fiscalização.
“Para
além da maior dificuldade de se identificar o destino desses recursos, o
relatório revela a impossibilidade técnica de se saber qual parlamentar foi o
proponente das emendas. Tais características da nova sistemática inaugurada em
2020 desestabiliza o sistema de controle dos recursos públicos, permitindo que
o gestor destinatário fique absolutamente livre de fiscalização e controle, o
que é inconcebível pelos valores republicanos pressupostos na Constituição
Federal”, resume o procurador.
Uma
das considerações dos autores do relatório diz respeito à fragilidade dos sistemas
de informação do SUS, que não foram capazes de alertar os gestores e
autoridades de saúde pública quanto às “anomalias” ocorridas. “Aspecto que
contribui, também, para que esse tipo de problema se propague e seja
recorrente”, reforça. Os pesquisadores destacam também que as plataformas
atualmente disponíveis nos municípios não apresentam para a população uma área
pública de transparência, que possa ser utilizada para o controle social, o que
ajudaria na fiscalização pela população e pela imprensa.
“Neste
contexto, os resultados desse relatório apontaram diversas inconsistências, as
quais podem estar impactando direta e negativamente no orçamento do SUS, devido
ao mau uso dos recursos. Se confirmadas tais inconsistências, podem estar
impactando, também, na condução das políticas públicas de saúde, pois os
gestores, em diversos níveis, estão tomando ou tomaram decisões com base em uma
falsa realidade, norteados por dados com pouca ou nenhuma integridade ou
fraudulentos”.
O
relatório, que é público, será encaminhado à CGU, TCU e outros setores do
próprio Ministério Público Federal. Confira a
íntegra do documento.
Assessoria
de Comunicação Social