É
em meio a incertezas sobre seu sucessor que o Bolsa Família, depois de 18 anos,
chega ao fim. Ao menos por enquanto.
O
programa sai de cena revogado pela Medida Provisória 1.061, publicada no dia 10
de agosto deste ano. A MP, que cria o Auxílio Brasil, determinou que, 90 dias
após a sua publicação, seria revogada a lei de 2004 que estabeleceu o Bolsa
Família.
Para
os beneficiários – que receberam a última parcela do bolsa ainda em outubro –,
ficam as incertezas sobre o novo programa, cujos pagamentos estão previstos
para começar este mês, mas que ainda sofrem com indefinições sobre valores e
fonte dos recursos.
O
Ministério da Cidadania reafirmou em nota na sexta-feira (5) que os pagamentos
do Auxílio Brasil terão início no dia 17 e seguirão o calendário habitual do
Bolsa Família. “A operacionalização do Auxílio Brasil será regulamentada por
meio de decreto a ser publicado nos próximos dias”, acrescentou.
De
acordo com a pasta, o valor médio do benefício para quem já recebe o Bolsa
Família será corrigido em 17,84% já em novembro, com orçamento próprio do
ministério.
O
valor final do Auxílio Brasil permanente, no entanto, ainda não foi anunciado
formalmente e o pagamento de no mínimo R$ 400 agora virou promessa para
dezembro e continua dependendo da aprovação da PEC dos Precatórios.
Dúvidas
sobre o financiamento do novo programa
Os
recursos para os pagamentos, porém, não estão garantidos. Técnicos
especialistas em Orçamento alertam que, para pagar o benefício já em novembro,
é necessário que o Congresso aprove um projeto de lei enviado pelo governo que
transfere R$ 9,3 bilhões do orçamento do Bolsa Família para o orçamento do novo
programa.
De
acordo com os técnicos legislativos, a aprovação do projeto é uma formalidade
necessária para o governo poder usar o dinheiro do programa antigo na versão
nova.
“Em
dezembro, após a aprovação da PEC dos precatórios, o governo federal pagará um
complemento que garantirá a cada família, até dezembro de 2022, o recebimento
de pelo menos R$ 400 mensais. Quem já está na folha de pagamento de novembro do
Auxílio Brasil receberá o novo valor de forma retroativa”, informou a
Cidadania.
Para
arrumar espaço no teto de gastos para o benefício permanente do Auxílio Brasil,
a área econômica diz contar com mudanças nas regras dos precatórios (dívidas da
União já reconhecidas pela Justiça), considerados gastos obrigatórios. Mas analistas
têm indicado que seria possível incrementar o programa sem estourar o limite
para despesas, utilizando, por exemplo, recursos destinados às emendas
parlamentares.
O
que acontece agora
Correndo
contra o tempo, o governo tem alternativas caso o Auxílio Brasil não possa ser
pago ainda este mês. Uma delas é uma nova prorrogação do Auxílio Emergencial –
que também pagou sua última parcela em outubro.
Já
o Bolsa Família pode ser ‘ressuscitado’: uma nova medida provisória pode ser
editada para modificar o prazo de revogação do programa. Outra possibilidade
seria de que o Congresso, durante a tramitação da MP, suprima o trecho que
revoga o programa. Mas, pelo menos por enquanto, é o fim.
Ao
longo da última semana, as dúvidas sobre o fim do Bolsa Família e as regras do
novo programa social do governo provocaram filas nos postos do Cadastro Único
em cidades de todo o país.
O
Ministério da Cidadania afirma que o Auxílio Brasil irá contemplar
automaticamente as pessoas já cadastradas no Bolsa Família e que “não há necessidade
de recadastramento”.
“Neste
mês, serão beneficiadas cerca de 14,6 milhões de famílias. Em dezembro, o
número de famílias atendidas passará para 17 milhões, o que corresponde a todo
o público já habilitado e outras famílias que atenderem aos critérios de
elegibilidade do programa, zerando a fila de espera”, informou.
Histórico
do Bolsa Família
O
Bolsa Família foi criado em 2003, pelo então presidente Lula. Mas sua base veio
de antes: o programa veio a partir da unificação de uma série de benefícios já
existentes. Lá atrás, o valor pago era de R$ 50 por família em extrema pobreza,
com um acréscimo de até R$ 45 dependendo da composição familiar.
Com
um custo considerado baixo, o Bolsa Família conseguiu em seus 18 anos de
história reduzir a pobreza, diminuir a mortalidade infantil, e melhorar
indicadores de insegurança alimentar entre os mais pobres.
“Com
um gasto muito pequeno, que não chegava a meio por cento do PIB, ele conseguiu
romper o círculo vicioso da pobreza”, lembra Sandra Brandão, economista da
fundação Seade. “Ninguém imaginava que um programa com um custo tão baixo,
aplicado do país inteiro por um volume tão grande de pessoas, pudesse dar tão
certo”.
Os
gastos públicos com o Bolsa Família aumentaram sistematicamente entre 2004 e
2013 — quando atingiu o pico de R$ 38,4 bilhões, segundo os dados oficiais. No
primeiro ano da gestão Bolsonaro, em 2019, somou R$ 33,5 bilhões e, no ano
passado, caiu para R$ 10,1 bilhões — pois a população carente recebeu parte do
benefício por meio do auxílio emergencial.
Um
estudo do Ipea divulgado em 2019 apontou que, em 2017, as transferências do
programa retiraram 3,4 milhões de pessoas da pobreza extrema e outras 3,2
milhões da pobreza. E, de 2001 a 2015, o programa respondeu por uma redução de
10% da desigualdade no país.
O
mesmo Ipea também mostrou que cada real investido no programa geram R$ 1,8 no
PIB, criando um efeito benéfico ao crescimento do país.
A
economista Sandra Brandão, da Fundação Seada, aponta ainda que houve efeitos
positivos sobre a saúde e a educação, com queda de 58% na mortalidade infantil,
aumento da frequência escolar e – graças à melhoria na alimentação – na altura
das crianças.
Um
relatório publicado pelo Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas
Públicas do Ministério da Economia, já em 2020, apontou que “o programa
conseguiu com sucesso reduzir a pobreza no Brasil de modo significativo”.
Defasagem
e reajuste do benefício aos mais pobres
Nos
últimos anos, no entanto, o benefício vem sofrendo forte defasagem. O último
reajuste foi ainda em 2017, e a inflação corroeu boa parte do poder de compra
desde então. Segundo o economista da FGV Marcelo Neri, o Bolsa Família
precisaria hoje de um reajuste de 32,2% apenas para recuperar as perdas desde
2014 – mais do que os 20% anunciados para o Auxílio Brasil.
“Ele
vem sendo desidratado já há alguns anos”, lembra Neri.
Sandra
Brandão aponta que, diante dessa perda, “é absolutamente necessário reajustar”
o valor do benefício – seja com o nome que for –, ainda mais diante de uma
inflação em alta. “Se a gente usasse o parâmetro do Banco Mundial significaria
algo da ordem um benefício de R$ 300 o benefício individual”, aponta.
As
críticas sobre o novo programa vêm não em relação ao reajuste, mas à forma como
ele está sendo operacionalizado, com o estouro intempestivo do teto de gastos
para financiar um programa social em ano eleitoral, e sem uma garantia de
recursos para além de 2022.
Fonte: G1